domingo, 8 de agosto de 2010

Ode a Federico Garcia Lorca - de Pablo Neruda

Se pudesse chorar de medo numa casa deserta,
se pudesse arrancar os olhos e comê-los,
seria pela tua voz de laranjeira enlutada
e pela tua poesia que sai de ti aos gritos.
Porque por ti pintam de azul os hospitais
e crescem escolas e bairros marítimos,
e povoam-se de plumas os anjos feridos,
e cobrem-se de escamas os peixes nupciais,
e voam para o céu os ouriços-do-mar,
por ti as alfaiatarias com negras membranas
enchem-se de colheres de sangue,
e devoram fitas rasgadas, e matam-se com beijos,
e vestem-se de branco.
Quando voas vestido de pêssego,
quando ris com riso de amor enfurecido,
quando para cantares sacodes as artérias e os dentes,
a garganta e os dedos,
morreria pela doçura que tu és,
morreria pelos lagos vermelhos
onde no meio do outono vives
com um corcel e um deus ensanguentado,
morreria pelos cemitérios
que como cinzentos rios passam,
com águas e túmulos,
de noite, entre sinos afogados:
rios espessos como dormitórios
de soldados enfermos, que de súbito crescem
para a morte em rios com números de mármore
e coroas apodrecidas e óleos funerários,
morreria por ver-te de noite
olhar as cruzes submersas passar,
de pé e chorando,
porque diante do rio da morte choras
abandonadamente, feridamente,
choras chorando, com os olhos cheios
de lágrimas, de lágrimas, de lágrimas.
Se pudesse de noite, perdidamente só,
acumular olvido e sombra e fumo
sobre caminhos-de-ferro e vapores
com um funil negro
mordendo as cinzas,
fá-lo-ia pela árvore em que cresces,
pelos ninhos de água doirada que reúnes,
e pela trepadeira que te cobre os ossos,
comunicando-te os segredos da noite.
Cidades com cheiro a cebola molhada
esperam que tu passes cantando roucamente,
e silenciosos barcos de esperma te perseguem
e andorinhas verdes fazem o ninho em teu cabelo,
e além disso semanas e caracóis,
mastros enrolados e cerejas,
definitivamente circulam quando assoma
a tua pálida cabeça de quinze olhos
e a tua boca de sangue submergida.
Se pudesse encher de fuligem as alcaidias,
e soluçando derrubar relógios,
seria para ver quando à tua casa
chega o verão com os lábios rachados,
chega muita gente de traje agonizante,
chegam regiões de triste resplendor,
chegam arados mortos e papoilas,
chegam coveiros e cavaleiros,
chegam planetas e mapas com sangue,
chegam mergulhadores cobertos de cinza,
chegam mascarados arrastando donzelas
atravessadas por facas enormes,
chegam raízes, veias, hospitais,
mananciais e formigas
chega a noite com a cama aonde
morre entre aranhas um soldado solitário,
chega uma rosa de ódio e alfinetes,
chega uma embarcação amarelenta,
chega um dia de vento com um menino,
chego eu com Olivério, Norah,
Vicente Aleixandre, Délia,
Maruca, Malva Marina, Maria Luísa e Larco,
a Rubia, Rafael, Ugarte,
Cotapos, Rafael Alberti,
Carlos, Bebé, Manolo Altolaguirre,
Molinari,
Rosales, Concha Mendez
e outros de que me esqueço.
Vem para que te coroe, jovem da saúde
e da borboleta, jovem puro
como um negro relâmpago perpetuamente livre,
e conversando connosco,
agora, quando ninguém se demora entre os rochedos,
falemos simplesmente como tu és e eu sou:
para que servem os versos se não é para o orvalho?
Para que servem os versos se não é para essa noite
em que um punhal amargo nos procura, para esse dia,
para esse crepúsculo, para esse lugar destruído
onde o golpeado coração do homem se dispõe a morrer.
Sobretudo de noite,
de noite há muitas estrelas,
todas dentro de um rio
como uma fita junto às janelas
das casas cheias de pobre gente.
Alguém lhes morreu, talvez
tenham perdido o trabalho nos escritórios,
nos hospitais, nos ascensores,
nas minas,
sofrem os seres tenazmente feridos,
e há propósito e pranto em toda a parte:
enquanto as estrelas correm dentro de um rio interminável
há muito pranto nas janelas
os umbrais estão gastos pelo pranto,
as alcovas estão molhadas pelo pranto,
que em forma de onda vem morder as alfombras.
Federico,
tu vês o mundo, as ruas,
o vinagre,
as despedidas nas estações,
quando o fumo levanta as suas rodas decisivas
para onde não há nada senão algumas
separações, pedras, vias-férreas.
Há tanta gente fazendo perguntas
por toda a parte.
Há o cego sangrento, e o colérico, e o
desanimado,
e o miserável, a árvore das unhas,
o bandido com a inveja às costas.
Assim é a vida, Federico, aqui tens
as coisas que te pode oferecer minha amizade
de melancólico varão varonil.
Já sabes por ti mesmo muitas coisas
e outras irás aprendendo lentamente.

Pablo Neruda, 1935
(tradução: Eugénio de Andrade)